sábado, 13 de junho de 2009

DA INDIFERENÇA

"Um dia , uma amiga torceu um pé e fez uma ruptura de ligamentos. Andou meses de muletas. E começou a reparar nas pessoas de muletas. «Não imaginas a quantidade de gente que anda de muletas», informou-me. «Nunca tinha reparado, parece que, de repente, o mundo se encheu de coxos». O fenómeno, parece, sucede também com as grávidas: garantiram-ne que reparam obsessivamente nas grávidas. Como se as ruas, cafés, restaurantes, os elevadores, as praias, os cinemas e museus se tivessem povoado subitamente de grávidas. As mesmas que lá andavam antes, claro, mas agora envoltas num halo de reconhecimento e solidariedade-im halo que diz: « olha, outra como eu». ..... Dar-nos conta disso é darmo-nos conta da forma como funciona a percepção, ou seja, a nossa consciência e visualização da realidade, e de como está irremediavelmente condicionada pela prespectiva individual. O que isto nos diz, de uma forma tão simples, é que, mais do não existir um «ver» objectivo, só vermos o que nos interessa, aquilo que reconhecemos e em que nos reconhecemos.Esta capacidade ou incapacidade? - explica que quando somos jovens não reparamos nos velhos e que quando velhos reparamos tanto nos jovens: os jovens que não se imaginam velhos...mas os velhos sabem bem o que é ser jovem. ... A fenomenologia da percepção (...segundo Merleau-Ponty... »observação objectiva» é tudo aquilo de que nos apercebemos depende de quem somos e do que somos) implica que, no limite, possamos ser absolutamente cegos em relação a coisas que estão à frente do nosso nariz. Como os animais que num safari passam pelos carros cheios de turistas como se não existissem-porque neles não reconhecem nada que lhes interesse ou lhes diga algo de perceptivel - passamos todos os dias por coisas, situações e pessoas das quais não nos damos conta. è altamente provável - virtualmnente certo? - que não só não nos demos conta de parte substancial do que se passa á nossa volta como tenhamos, a maior parte do tempo, sequer a consciência de que isso assim é. .... Neste óbvio e tão fácilmente demonstravel paradoxo se fundamentam porém os conflitos, todos os desencontros, todos os choques, dos de trânsito aos civilizacionais , passando pela famosa incomunicabilidade relacional. Nenhum remédio, claro-a não ser o de, e sai outro paradoxo, tentarmos aperceber-nos da nossa incapacidade de nos apercebermos.Tentarmos admitir que vivemos em túneis de sentido e percepção, e que só podemos tentar imaginar o que é ser outro, o que é ver o que não vemos, o que é coxear quando não coxeamos (porque é tão fácil e rápido esquecer e não ver quando largamos as muletas). O que é - isso é o mais dificil - um mundo em que não existimos, um olhar capaz de não nos ver . " Um texto da jornalista Fernanda Câncio inserto na revista Noticias Magazine de 24/05/2009[/b]



Que em cada um de nós renasça a capacidade de sermos "coxos" aquando da indiferença , através de uma palavra, de uma porta aberta, de um sorriso

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