sábado, 13 de junho de 2009

A In-significância do presente


«A literatura é grande quando ela trata o Mal. Não quando o cura, quando quer ou crê curá-lo: não se cura como também não se cura o real».
Christian Prigent, A quoi bon encore des poètes?, POL Éditeur, Paris, 1996


Olhando o passado, talvez se possa dizer que a preocupação do homem foi sempre a de acertar significados e coisas. Acertar a vida humana. Tal tarefa hercúlea vem desde a invenção da magia e dos rituais como forma prática de estar por dentro das coisas utilizando-se a significação atribuída como instrumento dessa entrada. Mitos, religiões, poesia, filosofia e ciência foram os passos seguintes, e cada um sempre novo para novos tempos, novos espaços e outros mundos. Porém, como diz Christian Prigent, «mais do que nenhum outro talvez, o nosso mundo é um mundo com falta de sentido. Neste, a procura de sentido é portanto bem mais obstinada».(op.cit)
E, deveria ser assim? Compreende-se que assim deva ser? Teremos de olhar a actualidade para tentar encontrar a desculpa ou a justificação, quero dizer, os sintomas, para que se compreenda tão obstinada procura. Então, com o auxílio de Prigent, vale a pena reparar em alguns sintomas importantes. Habitamos um tempo histórico em que, por um lado, tendemos a acreditar na verdade objectiva das ciências positivas, e por outro, não nos inibimos de entrar nos discursos e nas práticas mágico-religiosas. Assim, tanto se quer e crê na velocidade e na mobilidade net, como se participa de bom grado num clube de yoga, numa seita religiosa ou num espectáculo de futebol.
Como refere Prigent, uns tentam estabilizar as indecisões traumatizantes na «carcaça de um moralismo totalitário», (op.cit), e outros refugiam-se «nas crispações nacionalistas, na xenofobia, nas acções de “purificação étnica” e no ódio racista».(op.cit) Ao mesmo tempo, é este um presente em que muitos se agarram à ecologia profunda que «constitui de agora em diante, o grande Desígnio que virá iluminar as zonas de penumbra, dando de novo sentido à acção humana, e re-mobilizando intrépidas e pouco críticas vocações militantes».(op.cit)

Neste contexto de falta de sentido, como ficam e onde estão os que não aprovam nem aderem à realidade tal como ela é dada, feita, pré-per-feita, sossegada, posta na tecno-ordem e em sistemática circulação? Onde estão e como ficam os que gostam do assombro, do mistério e da paixão? Em que superfície profunda caminha e canta a «velha toupeira poética»?(op.cit) De que literatura pretende ela escapar, e porque quer ela continuar a ser moderna? De que ficção consumível necessita explodir? No fundo, a questão que se coloca é a de saber se a escrita ainda faz sentido e se, no mundo humano, pode ela ser poética.
Com Prigent, defendo que a escrita é de nós e faz-nos ser. Sem a escrita a vida parece despersonalizada, parece falar miseravelmente falso. A escrita faz sentido em todo o tempo e em toda a língua ao permitir a experiência íntima do mundo, e ao tecer os limbos silenciosos da existência vindos na escuta do ser. A escrita faz pensar na palavra nova que sentimos solitária nas coisas do mundo que (nos)-fazem viver. E, neste movimento livramo-nos da regularidade, livramo-nos para um mundo que pode ser escrito em liberdade, na língua poética que nos faz homens. Porque, como diz David Mourão-Ferreira, «a palavra poética, na própria medida em que é um microcosmos, representa uma parcela da visão do mundo, subentende uma escolha, implica uma responsabilidade.» (“Depoimento sobre a Poesia da geração de 50”, in Gazeta Literária, II série, nº 12, Junho 1960)

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